SP: mostra leva público a refletir sobre tensões políticas no Brasil

Às vésperas do segundo turno das eleições municipais, que será realizado em 51 cidades do país no próximo domingo (27), quatro documentários que estão sendo apresentados na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo convidam o público a refletir sobre as tensões políticas no Brasil e sobre a importância do processo democrático.

Documentários políticos, os filmes são importantes registros de eventos históricos do país. Seus objetivos vão além de ser apenas um documento de época: eles também acabam revelando as complexas relações políticas e sociais brasileiras, refletindo sobre um país que foi construído em bases contraditórias e desiguais.

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Mostra de Cinema Negro Zózimo Bulbul comemora 17 anos.Com exibição de 415 filmes, mostra de cinema começa nesta quinta em SP.Esses documentários percorreram longo caminho para ampliar as discussões sobre eventos tão recentes de história do país. Um exemplo disso é Apocalipse nos Trópicos, de Petra Costa, mesma diretora do premiado Democracia em Vertigem, filme brasileiro que reflete sobre o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e que foi indicado ao Oscar de melhor documentário em 2020.

Com Apocalipse nos Trópicos, a diretora volta a direcionar sua câmera sobre fatos recentes da história do Brasil, aproximando a lente, desta vez, para o tema do fundamentalismo religioso. “Apocalipse nos Trópicos é um filme que analisa o poder cada vez maior que os líderes evangélicos exercem sobre a política no Brasil”, disse a diretora, em entrevista à Agência Brasil. “Em forma de ensaio, o filme reflete sobre as diferentes compreensões que o cristianismo teve nos últimos milênios sobre o apocalipse e como isso nos afeta diretamente hoje com a ascensão do fundamentalismo cristão no Brasil”.

O título da obra, explicou a diretora, faz alusão ao filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, e ao livro Tristes Trópicos, de Levi Strauss. “O filme nasce da descoberta de que a palavra apocalipse, em grego, não significa o fim do mundo, mas sim revelação. O filme revela muito para mim desse Brasil em que estamos vivendo e possíveis brechas para não enveredarmos em caminhos autoritários que atualmente parecem nos puxar feito ímã”.

Mais uma vez, o temor de um abalo democrático ressurge em seu trabalho. “Acho que vivemos tempos de profunda turbulência política, em que nossas vidas dependem da sobrevivência desse sistema frágil que criamos: a democracia, que anda tão ameaçada. Como não falar e não pensar nisso? O que pode ser mais relevante a se fazer em tempos assim?”, questionou a diretora.

Para ela, a democracia brasileira só será garantida com a verdadeira punição aos seus transgressores. “Acho que [a garantia da democracia] passa por não esquecer [desses acontecimentos] e punir os ataques contra a democracia. Desde os ataques que aconteceram durante a ditadura militar quanto os mais recentes do 8 de janeiro, não houve punição. Nenhum mandante das Forças Armadas nem o ex-presidente [Jair Bolsonaro] foram punidos até agora”.

O povo

A participação popular nesses acontecimentos históricos é um dos focos dos documentários que estão sendo apresentados na Mostra de São Paulo.

O cineasta Gustavo Ribeiro, por exemplo, discute a questão da moradia digna e o direito de ocupação das cidades, colocando os anônimos e marginalizados em perspectiva. Na mostra, ele estará em cartaz com dois documentários: o primeiro é Intervenção, no qual acompanha o cotidiano dos moradores de uma comunidade da zona oeste de São Paulo que luta para ser urbanizada. O segundo é Ocupa SP, que aborda histórias de resistência e de luta de grupos marginalizados, mostrando a força e a resiliência de diversas comunidades em São Paulo.

“Os filmes tratam de questões sociais e urbanísticas na cidade. Intervenção é sobre a luta da comunidade do Ceasa, formada pelas favelas da Linha, do Nove e o Conjunto Habitacional Cingapura Madeirite, pela luta por moradia digna. O Ocupa SP é sobre o direito que as pessoas têm de ocupar a cidade, seja por meio da cultura, do lazer e da moradia”, disse o cineasta à Agência Brasil. “É enorme a quantidade de pessoas que mora na rua ou em condições precárias, e isso não é só uma questão de ter onde morar, é de ter a vida organizada para poder trabalhar, estudar, viver. E a moradia digna também é uma maneira de se horizontalizar a cidade e a sociedade”, acrescentou.

Em momento de eleições municipais, seus dois filmes apontam a necessidade de discutir temas tão urgentes para a população. “A questão da moradia é um problema muito grave no país e não será em quatro anos que um prefeito vai solucioná-la. É necessário um pensamento político a longo prazo, um projeto que ultrapasse os mandatos dos prefeitos e uma ação coordenada nos níveis municipais, estaduais e federais. A comunidade do Ceasa existe há quase 60 anos e nunca houve uma ação efetiva para resolver a questão de moradia na região. De qualquer maneira, as propostas dos prefeitos de São Paulo relacionadas ao déficit habitacional na cidade e aos moradores de rua são bastante tímidas”, disse o diretor.

Democracia concreta

Já o filme No Céu da Pátria Nesse Instante, de Sandra Kogut, registra a corrida eleitoral de 2022 e também a invasão e os ataques violentos contra o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 8 de janeiro de 2023, logo após a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

No Céu da Pátria Nesse Instante é um documentário que foi feito ao longo de 2022, ano das eleições presidenciais no Brasil. O filme acompanha alguns personagens ao longo desse período, pessoas que, de alguma maneira, estavam envolvidas nas eleições – ou porque trabalhavam  ou enfim, para quem as eleições seriam muito importantes. E esses personagens estão em ambos os lados do espectro político’, explicou a diretora. “Não é um filme de análise distante, mas um filme que mergulha. E acho que cada um, quando o assiste, revê um pouco o seu próprio filme daquele ano”, acrescentou

Em entrevista à Agência Brasil, Sandra Kogut contou que seu filme foi um desafio enorme, primeiro porque, ao ser um retrato do presente, não se tinha ideia do que iria acontecer em seguida. “Quando planejei o filme, eu pensava que iria filmar até a posse. Mas aí veio o 8 de janeiro, que era um pouco o que a gente vinha temendo: ‘será que vai ter um golpe?’. O 8 de Janeiro, de certa maneira, materializou muita coisa. E aí fui repensando o filme todo em função disso. Em um documentário como esse, você vai construindo e entendendo o que está fazendo à medida que vai avançando com o filme”.

Outra dificuldade que permeou as filmagens, disse a diretora, foi a grande polarização do país. “O filme nasceu quase de uma impossibilidade. Como é que você faz para falar com alguém que desconfia de você e que não pensa como você? Ao mesmo tempo, essa era a coisa mais importante, era quase o motivo de eu estar fazendo o filme”.

Ao enfrentar essas dificuldades, o documentário de Sandra Kogut acabou demonstrando como a democracia ocorre, em realidade. “O filme é uma visão, mas ele não é neutro, embora não seja uma peça de propaganda ou um filme militante. Ele é um olhar, um monte de perguntas. No filme, eu quis mostrar o processo eleitoral porque aquilo ali é a democracia sendo feita. Tentei traduzir a palavra democracia – essa coisa que parece assim abstrata – em algo muito concreto porque a democracia, na verdade, está no trabalho diário, na convivência, no dia a dia, na capacidade de conviver com as diferenças, de dialogar e de respeitar os limites e as instituições”.

A 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema vai até o próximo dia 30. Mais informações e a programação dos filmes podem ser encontradas no site do evento.